Biotecnologista e com Orgulho

Encerrando as publicações do mês da biotecnologia, nós não poderíamos deixar de falar de outra comemoração especial. O mês de junho também é o mês do orgulho LGBTQIA+. Um movimento que nasceu no dia 28 de junho de 1969, em Nova Iorque. Esse episódio é conhecido como Rebelião de Stonewall. Stonewall In foi um bar em Manhattan, onde aconteceram motins pela libertação do povo LGBT. Na época, poucos estabelecimentos aceitavam a presença de pessoas LGBT e o Stonewall era um desses lugares. Nas primeiras horas do dia 28, a polícia invadiu o local, reprimindo violentamente os que lá estavam, o que gerou uma série de protestos, que dão origem ao que hoje conhecemos como comunidade LGBTQ+. Além desse contexto, não poderíamos ficar alheios às manifestações antirracistas que tomaram conta do mundo, tendo como estopim, esse ano, o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos.  

Portanto, a LiNA foi buscar a história de alguém que traz um pouco dessa história e dessa representatividade em quem é e entrevistamos Ítalo Dorotheo.

Ítalo Neander Silva Dorotheo é biotecnologista, formado pela universidade federal de Goiás. Ítalo é de Morrinhos, interior estado de Goiás. Formado em 2019, Ítalo ingressou na universidade em 2015. Um homem negro e LGBT que passou por uma caminhada longa até chegar ao mercado de trabalho da biotecnologia.

LiNAbiotec: Conta um pouco de como você chegou na biotecnologia. Quais foram a suas primeiras impressões?

 Ítalo: Eu fiz uma pesquisa de mais ou menos 3 meses, estava em dúvida entre engenharia química, farmácia e biotecnologia, mas escolhi biotecnologia pela facilidade do acesso a uma pesquisa na área da saúde. Entrei meio confuso com essa realidade nova de matriz curricular, disciplina, mas com o tempo, eu fui me adaptando e hoje eu sou muito feliz com o curso que eu fiz e não me arrependo.

LiNAbiotec: Dentro da sua realidade, como era seu acesso à informação?

Ítalo: É um pouco complicado entrar nessa questão. Eu tinha sim alguns recursos, mas minha cultura não era essa de entrar em pesquisa científica. Meu ensino médio foi em uma escola pública, então tudo que tínhamos era muito básico de referência. Até minhas prioridades eram outras, já que eu não esperava passar numa universidade federal, mas aconteceu que deu certo e tudo acabou bem.


Esse relato corrobora o que nós já sabemos sobre as escolas públicas. Dentro desse recorte social, a realidade ainda é a de jovens que precisam fazer um esforço desigual para chegarem a ocupar esses espaços. Uma realidade não só em Goiás, mas no Brasil.


LiNAbiotec: Entrando em um campo mais delicado, que tipo de preconceitos você percebeu durante sua graduação?

Ítalo: Essa é uma coisa que eu sempre discuti. Nosso curso é muito elitizado. Quando você olha a turma que se forma, são 90% pessoas brancas, cis-héteros, que vem de classes mais privilegiadas, com uma condição financeira melhor, que vem de escolas particulares… Mesmo com as cotas, a gente se questiona sobre se são mesmo aqueles 50% de cotas para negros, pra alunos de escola pública… Uma coisa que eu sempre percebi era o racismo mais estrutural. No curso, parece que só quem se forma são aquelas pessoas que ganham um carro no primeiro ano de curso.

LiNAbiotec: Você citou o racismo estrutural… Você sofreu racismo?

Diretamente eu creio que não. Não o escancarado, pelo menos, mas passei por situações que me deixaram chateado. Quando por exemplo professores da biotecnologia falarem em palestras e fóruns de discussão que a qualidade da aula deles tinha decaído por conta dos aluns cotistas, por conta do público LGBT, do público negro. Professores que questionavam sobre as pessoas da escola pública que não tinham a bagagem teórica pra estar ali. Isso me deixou bastante chateado, eu me senti mal. Outro ponto foi uma ex-orientadora de TCC, que é uma pessoa muito privilegiada dentro da instituição, que mostra uma posição de mente progressista, desconstruída mas que é muito incoerente nas suas ações.

Cada um tem seu “corre” quando não tem um pai que tem condição de lhe mandar 5 mil reais por mês pra você se manter na cidade. E dentro das coisas que eu fazia pra sobreviver, trabalhando com festas, música, produção de arte pra poder sobreviver. Ela me questionava muito sobre isso, dizendo que meu estilo de vida não era de um universitário, que eu precisava estar no laboratório, que eu não ia conseguir me formar por conta desse estilo de vida. Além de todo esse terror psicológico, ela ainda era, como eu disse, incoerente, quando se gabava que os filhos iam viajar para um congresso, e quando eu mesmo viajei pra participar do NÚCLEO’17, ela me tirou do grupo do laboratório, porque eu tinha passado essa semana fora. Mas deu tudo certo e hoje eu tô aqui, formado e trabalhando na minha área, além de ser, aqui, um dos melhores alocados.

LiNAbiotec: E como você enxerga o público LGBT dentro da biotecnologia?

Eu acho a biotecnologia nesse quesito, muito diversificada. Mas acredito que quando se fala de sexualidade, ainda falta uma profundidade, pra discutir com seriedade. Seriedade mesmo, não só bater cabelo e dar close. Precisamos discutir entre os alunos mesmo, pontuar pesquisadores LGBT, não que seja um diferencial, mas trazer essa representatividade. Eu falo isso porque sempre que eu vejo algum homem negro, gay que não seja o padrão do que a sociedade vê como adequado, eu me solidarizo. Essas pessoas são alvos duas vezes sabe? Quando você está numa universidade, os professores são todos arcaicos, tradicionais. Eles tem um estilo de vida e desejam eu todos sigam um estilo como aqueles. Tenho professores machistas, abusadores, hipersexualizadores que vão trabalhando na nossa cabeça pra reforçar preconceitos contra o que nós somos

A única pessoa que era referência de pessoa preta pra mim era da minha turma. Foi a única pessoa que como eu era cotista, estudiosa. Ter essa pessoa foi importantíssimo pra mim porque era uma pessoa que parecia comigo. Quando a gente entra nesse mundo a gente vê um padrão em todo lugar, nos professores, entre os alunos e ter outra pessoa como eu foi um ponto muito crítico que me ajudou a me formar. Hoje ela é uma pessoa tão maravilhosa quanto sempre foi, já ganhou vários prêmios.

Quanto a ser LGBT eu acho que fui o primeiro queer dentro dali. O primeiro a andar com roupa feminina e fui apontado, muito questionado por isso, porque mais uma vez, eu estava fugindo do padrão. As pessoas diziam que eu tinha gosto por “lacrar” por falar coisas que chocam e não era isso, eu só estava tentando ser eu e eu não sou igual ao padrão.

LiNAbiotec: Mudando um pouco de assunto, qual a sua visão sobre o mercado de trabalho da biotecnologia?

Ítalo: Pro mercado de trabalho da biotecnologia, eu acho que ainda temos um longo caminho a percorrer. O mercado em si não é o que a gente costuma escutar, onde as melhores pessoas, mais bem capacitadas recebem as melhores colocações. Há muita indicação e influência. É aqui que entra a importância do networking. Trabalho já tem mais de um ano dentro de um laboratório de análise industrial, voltado para açúcar e álcool e só depois de um ano que eu começo a colher o reconhecimento profissional. Sou cotado pra ser o próximo líder do laboratório. Mas não é sobre isso. O mercado que a gente precisa ocupar é muito dominado por químicos, farmacêuticos, biomédicos, profissões que tem conselhos fortes e nós ainda não temos um conselho que brigue por nós, que fale como igual com esses empregadores.

Foi um conhecido meu que me falou da vaga, que já trabalhava na empresa, mas em outro setor. Ele trouxe meu currículo e eu passei por toda o processo seletivo. No mês que eu assinei meu contrato, eu estava prestes a assumir um posto numa escola profissionalizante, mas não me arrependo de ter vindo pra essa empresa. Acho que essa experiência vale muito pra se em algum momento eu voltar pra universidade pra fazer alguma outra pós-graduação. Hoje eu curso uma pós-graduação em processos químicos e farmacêuticos pra complementar minha formação e já me preparar para futuras oportunidades que possam surgir, porque no mercado, você precisa saber jogar e saber seguir o ritmo da música nessa vida no setor privado.

Acho também que os formados precisam começar a ocupar o mercado de trabalho, para abrir os caminhos para queles que ainda estão se formando.

LiNAbiotec: Qual o cargo que você ocupa e hoje? E você pode falar um pouco da sua empresa também?

Hoje eu sou analista de laboratório industrial, na Usina Caçú, uma empresa sucroalcooleira. Produzimos etanol e açúcar, esse açúcar para alimento e para uso como coadjuvante, na produção de asfalto. Nosso etanol é derivado da cana e do milho e derivado de milho a gente produz também ração animal. Exportamos também levedura seca. Na equipe somo eu, analista, mais um líder, um coordenador, um encarregado, um de cada turno. Somos 4 turnos. Nesse tipo de trabalho não é comum ter biotecnologistas trabalhando, já que estamos afastados das capitais e dos grandes centros de pesquisa. Mas é uma área que tem crescido muito para nós. Essa área é dominada por químicos e técnicos em química atuando dentro de um bioprocesso. E quem entende mais de bioprocessos que os profissionais da biotecnologia não é?

LiNAbiotec: Pra encerrar Ítalo, deixe uma mensagem de Orgulho, para todos os LGBT’s que querem fazer ciência no Brasil e uma mensagem a todos os pretos biotecnologistas do país.  

Eu torço pra que os pretos estejam sempre no poder. Ninguém melhor do que um preto pra entender as dificuldades das pessoas. Eu torço para que os pretos não desistam de ocupar esses espaços dentro e fora da universidade, por mais massacrante que seja, por mais difícil que seja. Para os LGBT, sejam fortes. Apareçam. Ocupem espaços que nos disseram para não ocupar, façam ciência, sejam o melhor que vocês puderem e movam o mundo pela suas oportunidades. Não as ganhem, as construam.

A LiNAbiotec se orgulha com seus membros, tanto do conselho administrativo quanto no corpo social que se colocam na rua, se expõe a situações e lutam contra preconceitos a eles e elas direcionados por simplesmente serem quem são. A essas pessoas, a LiNAbiotec diz: Se orgulhem.

Reportagem: Bruno Pereira | Secretário de Comunicação da LiNAbiotec

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